terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Enchente (Luciano Penelu)

1.

Em todas as direções vejo apenas o mar escuro. Às vezes penso que a enchente já consumiu o mundo inteiro.

A casa resiste graças ao ingrato ofício que assumi: com uma bacia removo a água que escorre pelas frestas da porta e lanço-a novamente ao mar através da janela. Meu descanso nunca é superior a alguns minutos, pois logo a inundação está nos meus tornozelos, fazendo-me trabalhar ainda mais exaustivamente para amenizar seus efeitos.

Sinto que nunca me dediquei a outra atividade. Nem sei ao menos quando começou tudo isso. Também não sei sobre as outras casas, pessoas, automóveis. Surpreendo-me por conhecer a existência de tais coisas, pois parece que nunca as vi. Memória. Como posso não tê-la? Esta casa me é muito familiar, porém não consigo uma recordação que seja dela. Móveis não existem. O único é aquele armário inacessível, trancado a doze cadeados e envolto em grossas correntes.
Tudo isso me parece irremediável. Corro os olhos em volta e procuro uma saída, mas logo sou tomado por uma crescente angústia. Devo voltar ao trabalho, evitar a inundação. Mas estou cansado. Um cansaço repentino como nunca antes me veio. Tenho que me sentar por pouco que seja.

2.

Dormi. Não sei se dou graças ou se me amaldiçôo por ter adormecido sentado. Ao despertar, percebo que a água encontra-se na altura do meu peito. Ponho-me de pé e corro para alcançar a bacia que flutua livremente pela sala. Uma penca de chaves. Uma penca de chaves dentro da bacia. Doze chaves. Doze chaves? Ignoro as águas e vou ao outro cômodo.

Apesar das mãos trêmulas, não levo mais que alguns minutos abrindo os cadeados. Dentro do armário, papéis. Cadernos, diários, fotos. Este aqui só pode ser eu. O reflexo na água escura não me permite ter uma noção exata do meu rosto, mas o que vi é muito semelhante a este sujeito das fotos.

Passei muito tempo entretido com os papéis. Devo ter lido muitas páginas, mas nada de que me recordasse. Nem as fotografias, as crianças, animais, desconheço todos. De nada me adiantou essa papelada. Algo bloqueia minha mente.

Não havia me dado conta de que as águas retrocederam. Será o fim da enchente? Volto à sala cheio de esperanças. Contudo, a inundação, mais uma vez, já começa a forçar sua passagem pela porta. Preciso da bacia. Vai subir tudo novamente. Não, não preciso de nada. Se a casa tivesse de ser inundada, já estaria sob as águas, e além do mais, já não me importo, para o inferno com tudo isso.

Sento-me à espera de um desfecho. A sala vai submergindo. Estou ligado a um destino incompreensível. Viver ou morrer já não me faz diferença alguma, então, que tudo acabe de uma vez. No entanto, a água não ultrapassou meus ombros. A força que a fazia subir se esvaiu, e ela escoa pela porta sem pressa alguma. Mas o que significará isso?

A morte não veio, mas me sinto bem. Chorar me traz algum ânimo. Debruçado na janela deixo as lágrimas fluírem, enquanto a enxurrada invade a casa, para logo depois recuar novamente. Mais calmo, consigo raciocinar melhor. Penso sobre tudo o que acontece, e algo me diz que as respostas que procuro não estão aqui. Preciso de uma resolução. Decidido, lanço-me ao mar.

3.

Venho nadando desde o salto. Faz um bom tempo que a casa desapareceu no horizonte. Não consigo saber quanto, pois não existem dias ou noites aqui. O céu permanece sempre alaranjado como num crepúsculo.

Não vejo o sol, não vejo nada além das águas escuras deste oceano.



O conto "Enchente" foi retirado do livro Apátridas, Coleção Nova Letra, Edições-MAC. Adquira este e mais outros livros pelo e-mail: macnovaletra@gmail.com

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